segunda-feira, 21 de março de 2011

Green River


E do alto dessa minha ingenuidade, protegida por sólidos muros de medo e orgulho, penso sobre as tempestades, as tristezas que escorrem pelas paredes sufocantes, as preocupações que se podem divisar. Sem ver que me trazes uma caixa de sorrisos, lindamente embrulhada em dias de sol, em passeios com o vento tocando os cabelos. Vem por entre a multidão com os olhos fixos, e me traz um abraço e um aconchego enquanto me retraio lembrando somente de sombras e feras por entre os pés.

Tão tola, como sempre fui, lhe faço ouvir minhas demandas vãs, levianamente contadas como que para as paredes. E ignoro seu sorriso calmo, esperando que acabem os caprichos de menina, esperando aflorar novamente a mulher. Ignoro seus esforços, não percebo como se movem as engrenagens por trás de todas essas coisas que me alegram. Continuo com as palavras afiadas enquanto simplesmente não percebo o quanto caminhaste para me trazer uma simples caixa de sorrisos embrulhados em dias de sol. O quanto fizeste, colhendo um a um, em um jardim secreto. E espera pacientemente, querendo simplesmente me vestir com esse manto suave, e assim espera. Recebendo com não mais que um sorriso os copos de dissabores e frustrações vagas que ofereço um após o outro. 

Eu pedindo, exigindo cada vez mais, enquanto és muito mais do que qualquer dia pude querer. Me oferece o carinho mais sincero e me estende a mão, mesmo depois de conhecer os cantos mais negros de meus pensamentos. Talvez por não ter esperado por tanto que me seja tão difícil de ver o quanto és para mim. Ou talvez não queira ver, mergulhada nessa torre de orgulho.

Mas basta de buscar desculpas para o comportamento aristocrata cheio de despropósitos. Lentamente, degrau a degrau, vou tateando e encontro a saída destas pedras que me sufocam. Posso então apreciar os sorrisos tão adoráveis que me trouxe, como um simples bom dia, sentir aquecendo a pele delicada esses raios de sol, mas antes de tudo isso, sentir o toque suave de seus dedos em meu cabelo, sentir meu corpo no seu abraço, e ver então que tudo o que não se resumir a uma felicidade bastante simples não passa de um despropósito. Ver então que não preciso pedir nada além do que já está disposto a me oferecer, muito mais do que eu jamais quis, muito além do que eu preciso. Também eu poder mostrar que sou capaz de fazer o necessário por um simples sorriso seu, e quem sabe mais. E seguir seus passos, que eu sei que conheçes o caminho.

Siga onde vão meus pés
Porque eu te sigo também.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Fly me to the Moon



Essa chuva invadindo meus sonhos, deixando o sono tão mais leve, e com sorrisos inconscientes perfumando o despertar, enchendo de pequenas rosas esse quarto. Me acorda, vai, me enche de beijos, acaricia meus cabelos, sente o toque da minha pele macia pela manhã. Simplesmente acordar por que é melhor te olhar nos olhos que nos sonhos. Por mais loucos, por mais que os sonhos não retratem as tempestades, as preocupações, os compromissos. Chove lá fora, e por enquanto isso é tudo que importa. Que o tempo escorra lento pela paredes, não preciso me importar com os minutos que se extendem entre cada sorriso inocente. Por hoje deixe assim, esqueça do que um dia já foi, só se deixe assim aproveitando esse não fazer nada, só se deixe relaxar, só se deixe estar. Me trança os cabelos entre seus dedos, em minhas costas escreve histórias de guerreiros e dragões. O trovão lá fora é pretexto para me abraçar, me acalmar, me dizer tudo vai ficar bem, tudo vai ficar. Seu corpo junto ao meu, seu calor me fazendo querer estar mais e mais ali, mais perto, mais tempo, mais junto. Me acorda com palavras doces murmuradas só para mim, me acorda com promessas de dias só nossos. Me deixa com esse sorriso de tudo vai dar certo se continuares aqui. Continue aqui.

E então abro os olhos. Sozinha, e o quarto me parece tão vazio. E assim esteve.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Jumpin' Jack Flash




Eu o encontrei provavelmente por uma estrada qualquer que já me acostumara tanto a passar. Por essas estradas que conhecemos as mínimas curvas e cada trecho nos traz memórias de tantas outras vezes que já nos vimos ali. Naquele dia provavelmente um pouco mais nublado que de costume, talvez um pouco mais frio do que o esperado, ele estava ao lado da estrada, como depois tantas vezes o vi. Provavelmente isso, sem aquela certeza de sempre, somente uma névoa pairando no limiar da memória.

O encontrei cantarolando uma canção qualquer. Sex Pistols, Rolling Stones ou Legião. Vinha caminhando ao lado da estrada, buscando um lugar logo após a próxima curva, ou a seguinte. Quero me encontrar mas não sei onde estou. Me disse um vem comigo procurar e a partir de então passou a seguir meus passos. Ou eu os dele, nunca soube direito.

A primeira impressão que tive foi de ombros cansados, de olhos que haviam visto mais do que desejavam, de mãos que haviam mais largado que segurado. Os olhos quase-cinzas, me lembravam a princípio os dias de tempestade que tanto assombraram meus tempos de criança. Mais tempestades que dias de sol, ou ao menos isso que me recordo. Mais tarde haveria de perceber uma centelha de vivacidade morando no fundo de suas retinas, uma força inesperada pairando em seus músculos, uma maciez singular no toque de seus dedos. E talvez percebesse tantas outras coisas que me pareciam tão nebulosas, se ao menos tivesse ele se deixado conhecer por mim. Talvez tivesse percebido coisas que teriam feito tudo ser diferente. Mas isso foi muito depois.

Ele era daquela forma que me intrigava tanto. Liberto. Vivendo com seus próprios pés e mal ouvindo o sopro do vento. Mal vendo o tempo passar. Ia de lugar a outro, sem ter realmente onde se fixar. Ou sequer querer. Trazia consigo aquela magia que em tempos de juventude acreditava acompanhar os andarilhos, os aventureiros, ou os simples vagabundos. Os que vagam, que parecem viver em um mundo a parte, não são da mesma realidade que a todos engole. Mas hoje vejo que a magia mais estava em meus olhos que em qualquer outro lugar. Era muito mais alguém perdido, ou simplesmente fugindo de si mesmo. E tentei tanto encontrar para ele o que vinha buscando. Inocentemente acreditando que poderia eu devolver a ele o que houvera perdido. Sem saber, ainda, que nunca eu seria capaz de lhe entregar algo que só ele poderia encontrar.

Andamos por tantas estradas então. Sentimos a grama em nossos pés e as flores roçando as pernas. Ele aprendeu a ouvir os cantos do vento, e eu aprendi os versos que sempre o ouvia cantar. Cantava God save the queen she ain’t no human being e ouvia todas as histórias e os sonhos de revolução e de uma sociedade totalmente diferente do outro lado do mar. Eu contava as histórias da terra, da infância, eu lhe ensinava sobre o sol, a chuva e a tempestade. E ele sempre me falando de seus planos de mudar o mundo, sempre soprando um nas favelas, no senado, sujeira por todo lado sem sequer perceber. Me falou dos lugares onde estivera, das pessoas que conhecera, me contou histórias que eu nunca sabia se eram completamente verdade, embora acreditasse em cada palavra que me falava nas noites em claro. Me falou sobre música, me explicou de BB King a Jimi Hendrix, com um sorriso debochado, me contando que queria ser como Keith Richards, que era mais esperto que o próprio diabo.

Eu lhe acolhia nas tardes paradas de domingo, ou nas frias noites. Lhe acolhia, lhe aquecia, acalmava seus pesadelos. Tantos pesadelos. Ouvia suas angústias, e desejava com todas as forças poder lhe ajudar de verdade. Minhas palavras lhe faziam calmo, esboçava até alguns raros sorrisos. Pela manhã me acordava sussurrando em meu ouvido she comes in colors everywhere, she’s like a rainbow e eu não podia evitar os sorrisos que sorrateiramente se faziam aparecer. Aparecera repentinamente em meus dias, e alguns dias saía da mesma forma repentina me explicando I can’t get no satisfaction babe. Sempre procurando por algo que houvera perdido, algo que houvera deixado em alguma estrada que não mais se recordava. Sabia que voltaria. E voltava na calada da madrugada, como se sequer houvesse saído, com as mesmas histórias extraordinárias, e os mesmos amigos exóticos. Talvez outros, talvez não. Sempre tão fantástico, tão distante dessa minha realidade tão simples.

Nunca me contou de onde era, dos amigos de infância, de como houvera surgido naquela estrada, naquele dia nublado. Não sabia seu nome sequer, só como gostava de ser chamado. Por vezes ficava semanas sem vê-lo, sentia sua falta, ansiava por suas histórias e até mesmo por suas angústias. E quando mais sentia sua falta voltava a percorrer aquela estrada onde o encontrara, esperando que novamente estivesse sentado, olhando o horizonte, com aquele ar distante e sonhador. O encontrei lá novamente algumas vezes quando a saudade já se tornava algo sólido dentro de mim. Como se ele também sentisse. Como se pensasse da mesma forma. Querendo lembrar aquele lugar onde pela primeira vez cruzamos o olhar. Mas nunca realmente soube se era isso, ou somente o costume que o fazia voltar, somente a inércia, o não saber onde ir.

E um dia então amanheceu com um ar estranho, ele acordado desde cedo, sequer oi me deu quando perguntei o que houve. Estava anormalmente quieto e quando lhe pedi para me contar alguma das suas histórias se manteve reticente. Me disse então que iria embora e achava que não voltaria. Que precisava andar por outras estradas, que ainda não encontrara o que vinha procurando. Com um ar de mistério que já me acostumara em suas conversas. Lhe pedi que não me abandonasse, que precisava dele, da forma que fosse, que morreria de saudades, que não saberia sorrir sem seu abraço. Let’s spend the night together, now I need you more than ever. E falava com a sinceridade dos que não aprenderam a dissimular. Implorava por algo simples. Que ficasse, que tudo estaria bem. Porém já saindo me falava It’s my life pretty babe, don’t try to change my ways como se sequer me conhecesse. Por entre lágrimas que já me começavam a escorrer o ouvi cantando mas egoísta que eu sou esqueci de ajudar a ela como ela me ajudou...

E não seria a última vez que esses versos encontrariam meus ouvidos.

Nunca mais o vi, nunca mais o ouvi cantar, nunca mais ouvi falar dele.

Nunca o esqueci.



I was born in a crossfire hurricane

And I howled at my ma in the driving rain
But it's all right, now, in fact it`s a gas
But it's all right, I'm jumping jack flash, it's a gas, gas, gas!

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Castles Made of Sand



Tudo começou assim meio sem querer. Meio sem perceber. Ele lhe sorrindo, e ela quase sem notar devolvendo seu nome soprado ao vento. Foi tão de repente que sequer sabia contar, sequer lembrava se eram as flores da primevera ou as geadas do inverno que recobriam seu cabelos. Começou sem querer, sem pensar, e os sorrisos vieram antes mesmo de notar.

O que antes eram palavras dispersas se tornaram sussuros ao pé do ouvido. Sem perceber, acordou ao seu lado, e sem nem entender direito por que, se viu alegre, se viu bem, se viu confortável. Aconchegada em seus braços, aquecida em seu abraço. Se viu acordando com os olhos limpos, com o rosto iluminado.

Não planejara nada daquilo, não esboçara, quantificara. E quando percebeu por quais estradas andava, tampouco se preocupara com esses detalhes enfadonhos. De que valem as palavras, se o importante são os sorrisos? De que valem os números, as imposições, as definições? Era feliz? Lhe parecia que sim. Eram? Provavelmente, tendo em vista o quando repetia certas palavras bobas que a faziam rir inocentemente. Quem se importava com o comum, quando nada desde o início nunca fora comum? olha, tenho medo do normal, baby.

Ele cantava can I stand next to your fire e ela tão liberta, relutava diante de certas decisões. Para então só não se preocupar, só se jogar, e ver qual a altura da queda. Qual a velocidade do vento nos seus cabelos. Sem se importar com o segundo seguinte. Só se deixar assim. And you shook me all night long.

A diversão logo se traduzindo em compreensão e cumplicidade. Ela assim tão sonhadora, imaginando ser possíveis seu sonhos tão bobos, acreditando em um lugar com sol, onde não haveria horário para nada. Ele assim tão cético, num quase-riso quando ouvia suas paixões, seus romances, seus desejos. Ela tão artística, ele tão matemático. Tão ásperos, temperamentais, imperfeitos. Tão sempre sorrindo um para o outro. Chorando em seu ombro, secando suas lágrimas. Lhe contando piadas bobas, lhe fazendo rir sem motivo.

Para ela, tão pessimista, tão doída de feridas de tempos. Remoídas, ruminadas. Calejada. Pessimista. Ele tão tranquilizador. Tão rindo e dizendo não se preocupe tanto. Ele dizendo o deixe acontecer que houvera saído dos lábios dela.

Mas ela em segredo pensava, baixinho, num canto da cosnciência, se está tudo bem é por que ainda não acabou.

domingo, 5 de dezembro de 2010

For What It's Worth


Eu ando com os pés trocados

Meus passos tão reais e limitados não comportam o tamanho dos meus sonhos

As minhas estradas tão utópicas

Os meus joelhos se cansam sob meu ritmo assimétrico

Eu tenho um cavalo que conversa comigo nas manhãs frias e nas noites enluaradas

Conversa comigo, me conta seus desejos, suas angústias

Conversa comigo, mesmo eu não conseguindo responder palavra alguma

Meus dentes cerrados, impedindo meus cantos mais belos de se fazerem soar

Toda essa realidade espessa, sufocante, limitante

Impedindo meus vôos mais altos, impedindo meus desejos mais loucos

Meus olhos que não vêem ainda o fundo dos teus olhos

Que se murcham à visão da tempestade que se pronuncia, que tu prenuncia

Mesmo que por dentro me revista de doces plumas e sonhos infindáveis

Me revista de altivez, de coragem, de motivação

Ainda assim ando com os pés trocados

Ainda não acostumada com os espinhos que me ferem em lugares que sequer sabia existir

Ainda acordo estranhando, acreditando o sonho da madrugada mais digno

Se podia voar, se sabia ser, se entendia os detalhes, por que se render ao não saber constante dessa dita realidade?


Meus passos não indo na direção que mando, minhas mãos atadas

Talvez seja só mais um sonho

E a realidade me permita finalmente contemplar nos teus olhos o reflexo de mim mesma

E me reconhecer a mim mesma, inteira

Não assim sufocada nesse caminhar por estradas que não as minhas

Quem sabe ao acordar

E enfim despertar



quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Who are you

Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido,
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.

Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.
(Thiago de Mello)

Jordana queria tudo. Queria as tardes de verão e o aconchego do inverno, as mais finas iguarias e o cachorro quente da esquina, as doces notas do saxofone e a viceralidade da guitarra. Jordana achava que a vida deveria seguir de uma forma estabelecida. Estudar, crescer, trabalhar, amar, casar, criar, cansar. Andava pela rua e observava os sorrisos que recebia com uma idéia fixa das qualidades e até mesmo proporções do seu homem perfeito. Haverá de ser forte, loiro, haverá de me colher flores e abrir portas, como na música que cantava Bob Dylan. E vinha assim filtrando por entre olhares o amor certo que decididamente encontraria. Jordana era inteligente, era bonita, os cabelos quase ruivos espalhando-se por uma pele macia, que não conhecia o desgaste, que não conhecia o sofrer. Queria ser escritora, pois os escritores lhe emanavam aquela aura quase mística. De quem sabe exatamente um pouco a mais do que todos os outros. Queria uma casa no campo, com uma varanda de frente para o pôr do sol e uma sala por onde entrasse os primeiros sóis da manhã. Queria filhos. De olhos azuis e cabelos angelicais. Queria um amor perfeito, com waffles pela manhã e ardores ao fim da tarde. Com rosas aos domingos, com passeios pelo zoológico e pipoca aos macacos. Jordana queria tudo.

Queria tanto que não soube ter algo que não soubera querer. Deixou os olhos verdes e os cabelos negros passarem tristes por ela. Largou a mão macia que buscava lhe mostrar algumas pequenas belezas pelo caminho. A voz doce, os contornos belos, nada disso era o que Jordana queria. O amor simples, os sorrisos fáceis. O gostar como forma de ter. Aquela simplicidade não se encaixava em seus grandes planos. Seguiu seu caminho enfim, querendo sempre algo logo após o horizonte. Cega às margaridas que passam por seus pés, alheia às águias que voam sobre si. Jordana tanto queria que sequer percebia as belezas e felicidades da jornada. Sempre o querer, esquecendo-se do ser. Era Jordana, e o que mais?

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

So Real



Jeff Buckley era seu companheiro das noites frias. Permeava as paredes daquele seu quarto confuso. Seus pensamentos já não mais servindo de papel de parede. Mostrando o desgaste característico, um rasgo aqui, um desbotado ali, as cores mal visíveis, os sons mal distinguíveis. A noite quem sabe convidando a uma cerveja, uma caminhada, o desapego e a despreocupação. O calor convidativo. Mas sempre aquela geada singular pairando próxima ao soalho.

Aquele quarto já conhecera muito, mas parecia-lhe sempre o mesmo, inalterado, sequer um grão de poeira a mais. Uns livros na estante. Madame Bovary, Alice no País das Maravilhas, O Exorcista. Todos juntos, como se de alguma forma houvesse alguma ligação. Como se fosse possível. Como se, caso encontrasse a coerência no eterno caos que a cercava, encontraria também a coerência em seus múltiplos eus. Se deixava levar pelos romances, querendo sempre o cavalo branco, e quem se importa com a princesa, somente o campo e o pôr do sol.

Algumas memórias espalhadas, desconexas, forjadas? Se via tão nostálgica esses últimos tempos. Mas não saberia dizer se era real nostalgia ou somente a falta de um verdadeiro presente. Costumava, em tardes ensolaradas, com um sorriso dizer sabia que ando lendo os jornais? vou escrever um livro e plantar flores! venho sendo saudável, fazendo exercícios e me alimentado bem. refleti tanto com este livro que estou lendo, sabe, me sinto quase adulta... Para então com o ar melancólico da consciência, se virar e saber no fundo de seus pensamentos que não passam de planos fúteis buscando preencher um vazio inerente. Um vazio de companhia, uma solidão que, cercada de amigos, se torna mais sólida com as estações que passam. As folhas caindo compassadamente. O coração batendo de forma lenta, apática. Os olhos não vendo, os ouvidos não ouvindo. Se lembrava, e parecia ser a única coisa que lhe parecia de fato real.

Ouvira isso em algum lugar já. Você é a primeira pessoal real que conheço. Não compreendera de todo. Lhe parecia, no momento, que eram completamente reais todas as peles que tocava, todos sorrisos que criava. Até então não parecer ela mesma real mais. Poderia tão perfeitamente não o ser, e sequer perceberia. Se lembra de quando em seu banheiro tão branco demais o sangue, seu próprio sangue, houvera tornado rubro um amanhecer qualquer. E então lhe parecera prova de realidade. Sangro, logo existo. Não sangro, logo não me machuco, logo não me aventuro, logo não vivo. Correto?

Já lhe dizia Saramago
que não nos vemos se não nos saímos de nós e seria capaz ela? Quisera tanto já fugir, deixar para trás, para que então na volta, visse finalmente, com olhos reluzentes, a si mesma a sorrir e com saudades, correr ao encontro. Desejara, e ainda desejava tanto, poder ir em busca de sua própria ilha desconhecida. Mas então estremece ao pensar. E se, de fora de si, buscasse por todos os cantos e não se encontrasse em lugar algum? Seria a prova definitiva de sua própria não existência? De sua antiga suspeita de irrealidade? Sua rotina acordar-banho-ônibus-faculdade-estudo-cama não lhe constituia prova alguma. Pelo contrário, quase. Por ora continuava somente a enganar a si mesma e a quem mais quisesse ouvir com planos e não-realizações, tentando disfarçar sua apatia. Sua melancolia inerente, seus dilemas contantes, sus tristezas pontuais, tudo varrido para debaixo desse tapete de falsas e efêmeras seguranças.

E de repente, como vira tantas e tantas vezes, se deitar na grama nova, se rolar na grama, e com a primavera, deixar para trás a pelugem antiga do inverno no chão de grama nova. Se desfazer dos pesares, se desfazer dos conservadorismos, dos conceitos alquebrados, das lágrimas mal resolvidas. Seguir em frente então nova. Sacudir e esquecer em um campo qualquer essas angústias, essas inseguranças.

Como queria poder, simples assim.