domingo, 6 de junho de 2010

For Reasons Unknown


A chuva caindo pela janela e todas as ínfimas gotas como que lentamente caindo, brincando com as folhas, dançando ao menor vento. Caindo. Alagando, enlamendo, molhando essa terra que já passa a fazer parte dela mesma. Mais que nas solas dos sapatos e por baixo das unhas, dentro das próprias cavidades e sentimentos e pensamentos. Essa terra que a cada dia parece mais um sonho bobo de um passado nem tão distante. Distante de si. Molhada, enxarcada. As flores e frutas e folhas e até os mais enérgicos cavalos, todos sentindo a inevitabilidade. E a chuva caindo, da mesma forma que cai sobre seus próprios cabelos. Inevitavelmente. Tranformando em aparência o que já é algo natural em essência. As poças, a umidade. Enxarcada.

Revigorando a terra, enquanto dá esse minuto – quem sabe horas ou dias – de introspecção. Como se pudesse o chão batido endurecido lavrado ter momentos de introspecção profunda e tivesse problemas a resolver. Essas tolices de olhos já turvos, essas tolices de quem já não mais distingue a chuva que escorre pelos galhos e delicadezas daquela chuva salgada e angustiante que insiste em escorrer por suas próprias faces. E essa terra que lhe parece tão mais velha, e por isso mais sábia? que todas as suas verdades absolutas, pensamentos elevados e intelectualidades juntas.

E os olhos tristes daquele animal a lhe fitar, tristes. Cansados de todos esses dias. Cansados de brincar de ser livre enquanto vê a si mesmo amarrado, preso, sujeito a vontades despropositadas. Os olhos tristes que à menor possibilidade de carinho, de diversão e novidade já brilham, talvez por ser o máximo que poderá lhe ocorrer, mas mais provavelmente somente refletindo o brilho de outros olhos. Já incapaz de lembrar dos dias que passaram, e o dia de ontem, embora o sol radiante, não é nada diferente desse dia de hoje chuvoso e frio. Todos os dias chuvosos e frios. Ele mesmo frio. E se indentificam. Os pêlos, os lábios, tudo o que se vir, tão diferentes. Os olhos. Os mesmos olhos, compartilhando a mesma angústia. Todo o mundo aprisionado sob o silêncio repressor. Lhe ensaia um boa dia, lhe ensaia um relincho. Corre, buscando assim encontrar a si mesmo. Nem no meio do campo, nem na frente do espelho, nem nua em lugar nenhum encontraria a si mesma. Aquela imagem refletida não lhe parece nada mais que um estranho brincando com suas percepções. Mas hoje não há, e sequer pode, procurar. Essa chuva impedindo seus sonhos. Uma adequada desculpa para essa necessidade de descançar. Descançar de que? De ter descançado esse tempo todo, não andado um passo sequer? Não falado nenhuma das palavras que tanto precisava. Ou então se aproximado os centrímetros que desejava. Os abraços que deveria. Os beijos que não sabe se queria.

O animal ainda a fitar, compreendendo como nem seu mais próximo amigo poderia, todos os dilemas, todas as reflexões, devaneios e filosofias que não consegue evitar, que lhe vêem como chuva. E com essa chuva ainda a incentivar. Os olhos escuros. Dizendo todas as palavras de conforto e aconchego e solidão que tanto silenciam. Silenciosamente. Tantos silenciam, apenas vendo seus olhos reticentes já silenciosamente se afastam, sem saber como conviver com tamanho desamparo. Mais fácil fugir, alegando um motivo qualquer. E ela também foge, a procura de si mesma, mas fugindo de seus próprios horrores, seus próprios dilemas, seus próprios temores substanciais. Foge para ver esse chão antes tão sólido escorrer por entre as pedras, escorrer por entre as mãos, como se esse fosse o destino natural de todas as coisas. Natural. Determinístico. E os olhos escuros ainda lhe vendo, cada detalhe. Esperando uma resposta que sabe com perfeição que não é capaz de lhes fornecer.

Sabe, com cada centrímetro de sua conciência, que sair a caminhar com aquele animal que lhe passa uma segurança incomum fará com que todas as dúvidas se dissipem e que todas as certezas lhe pareçam óbvias desde o princípio. Compreende que do fundo do seu silêncio resignado, aquele animal está e estará sempre ali, disposto a todas as mais longas e mais profundas conversas e poderá lhe contar todos os segredos mais profundos. Ele lhe compreenderá. As quatro patas, a crina ao vento, as narinas dilatadas, todos os pêlos do corpo, cúmplices de uma conciência já semi fragmentada de incertezas permanentes. Mas precisa do vento, da grama e da vastidão do campo e do pôr do sol como testemunhas. Não poderá então, com essa chuva, lhe confessar os anseios e as angústias. Não pode, com a chuva caindo escorrendo molhando, caminhar e correr e quem sabe voar, da forma que quer, com aquele animal tão parecido consigo mesma. Exatamente por ser tão diferente. Enquanto chove não pode, não consegue, as gotas carregam consigo todas as mágoas, e cada som pronunciado. E ele então nunca compreenderia. Mas se sempre chove dentro de seus próprios olhos, então nunca poderá pronunciar todos os sentimentos que lhe inundam.

E então silencia. Vê apenas as gotas escorrendo no vidro, caindo com aquela lentidão típica. Silencia. Observa o fogo que busca lhe aquecer e acaba por lhe consumir. Se não pode ao fogo atirar suas próprias dúvidas, esse mesmo fogo consome as poucas certezas. E silencia, como já se acostumou a fazer. Como já nem mais percebe que o faz.

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