quinta-feira, 28 de outubro de 2010

So Real



Jeff Buckley era seu companheiro das noites frias. Permeava as paredes daquele seu quarto confuso. Seus pensamentos já não mais servindo de papel de parede. Mostrando o desgaste característico, um rasgo aqui, um desbotado ali, as cores mal visíveis, os sons mal distinguíveis. A noite quem sabe convidando a uma cerveja, uma caminhada, o desapego e a despreocupação. O calor convidativo. Mas sempre aquela geada singular pairando próxima ao soalho.

Aquele quarto já conhecera muito, mas parecia-lhe sempre o mesmo, inalterado, sequer um grão de poeira a mais. Uns livros na estante. Madame Bovary, Alice no País das Maravilhas, O Exorcista. Todos juntos, como se de alguma forma houvesse alguma ligação. Como se fosse possível. Como se, caso encontrasse a coerência no eterno caos que a cercava, encontraria também a coerência em seus múltiplos eus. Se deixava levar pelos romances, querendo sempre o cavalo branco, e quem se importa com a princesa, somente o campo e o pôr do sol.

Algumas memórias espalhadas, desconexas, forjadas? Se via tão nostálgica esses últimos tempos. Mas não saberia dizer se era real nostalgia ou somente a falta de um verdadeiro presente. Costumava, em tardes ensolaradas, com um sorriso dizer sabia que ando lendo os jornais? vou escrever um livro e plantar flores! venho sendo saudável, fazendo exercícios e me alimentado bem. refleti tanto com este livro que estou lendo, sabe, me sinto quase adulta... Para então com o ar melancólico da consciência, se virar e saber no fundo de seus pensamentos que não passam de planos fúteis buscando preencher um vazio inerente. Um vazio de companhia, uma solidão que, cercada de amigos, se torna mais sólida com as estações que passam. As folhas caindo compassadamente. O coração batendo de forma lenta, apática. Os olhos não vendo, os ouvidos não ouvindo. Se lembrava, e parecia ser a única coisa que lhe parecia de fato real.

Ouvira isso em algum lugar já. Você é a primeira pessoal real que conheço. Não compreendera de todo. Lhe parecia, no momento, que eram completamente reais todas as peles que tocava, todos sorrisos que criava. Até então não parecer ela mesma real mais. Poderia tão perfeitamente não o ser, e sequer perceberia. Se lembra de quando em seu banheiro tão branco demais o sangue, seu próprio sangue, houvera tornado rubro um amanhecer qualquer. E então lhe parecera prova de realidade. Sangro, logo existo. Não sangro, logo não me machuco, logo não me aventuro, logo não vivo. Correto?

Já lhe dizia Saramago
que não nos vemos se não nos saímos de nós e seria capaz ela? Quisera tanto já fugir, deixar para trás, para que então na volta, visse finalmente, com olhos reluzentes, a si mesma a sorrir e com saudades, correr ao encontro. Desejara, e ainda desejava tanto, poder ir em busca de sua própria ilha desconhecida. Mas então estremece ao pensar. E se, de fora de si, buscasse por todos os cantos e não se encontrasse em lugar algum? Seria a prova definitiva de sua própria não existência? De sua antiga suspeita de irrealidade? Sua rotina acordar-banho-ônibus-faculdade-estudo-cama não lhe constituia prova alguma. Pelo contrário, quase. Por ora continuava somente a enganar a si mesma e a quem mais quisesse ouvir com planos e não-realizações, tentando disfarçar sua apatia. Sua melancolia inerente, seus dilemas contantes, sus tristezas pontuais, tudo varrido para debaixo desse tapete de falsas e efêmeras seguranças.

E de repente, como vira tantas e tantas vezes, se deitar na grama nova, se rolar na grama, e com a primavera, deixar para trás a pelugem antiga do inverno no chão de grama nova. Se desfazer dos pesares, se desfazer dos conservadorismos, dos conceitos alquebrados, das lágrimas mal resolvidas. Seguir em frente então nova. Sacudir e esquecer em um campo qualquer essas angústias, essas inseguranças.

Como queria poder, simples assim.

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